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- Buscarita | Maternidades clandestinas
Maternidades clandestinas Como foi possível nascerem crianças nesse lugar? Quem hoje passa pelo número 8151 da Avenida del Libertador, em Buenos Aires, sente que ali há algo a ser notado. Uma atmosfera escondida por trás de muitos prédios que atualmente abrigam organismos e instituições ligadas aos direitos humanos. Um clima carregado de memória, verdade e justiça para os que conhecem ao menos um pouco da história do lugar onde funcionou a antiga Escola de Mecânica da Armada (ESMA). Foi lá que, entre 1976 e 1983, militares mantiveram presos, torturaram e mataram cerca de 5 mil homens e mulheres. Onde planos de sequestro, extermínio e execução eram traçados e de onde saíam grande parte dos vuelos de la muerte – método de execução adotado pelo regime militar argentino que consistia em jogar, de um avião, homens e mulheres atados a pedras em direção ao mar. Onde bebês nascidos em cativeiro eram separados de suas mães logo após o parto, que encurtava a sobrevida das mulheres que eram parcialmente poupadas para darem à luz. Ana María Martí foi sequestrada em 18 de março de 1977 e passou quase dois anos presa na ESMA, onde esteve submetida a condições subumanas, torturas e trabalho forçado. Recuperou sua liberdade em 15 de dezembro de 1978 e foi uma das testemunhas de julgamentos de crimes cometidos durante a ditadura. Em 2011, durante uma audiência que julgava o Plano Sistemático de Apropriação de Menores, Martí relatou que as grávidas eram mantidas vivas até o momento do parto. “Dentro da área das grávidas começaram a tratá-las muito melhor do que quando estavam na capucha. Comiam melhor, estavam mais limpas, podiam tomar banho.” De acordo com Maria Alicia Milia, que também esteve presa por quase dois anos na ESMA, na capucha, a principal diferença era que as gestantes não usavam capuzes, mas óculos que as permitiam ao menos respirar. Posteriormente receberam colchonetes e camas de metal, mas, assim como as outras detidas, comiam um sanduíche com mate pela manhã, no almoço e no jantar. Apesar dos relatos de melhores tratamentos na área das grávidas, não existia garantia alguma do bem-estar de qualquer um dos presos. Afinal, estavam privados de sua liberdade e sofriam diferentes tipos de violência – quando mantidos vivos. Seja nas maternidades ou não, as mulheres que carregavam seus filhos foram sistematicamente submetidas a abusos, inclusive durante e após os partos, quando seus bebês eram imediatamente retirados de seus cuidados. As maternidades compunham um plano audacioso: o roubo sistemático dos filhos de desaparecidos. BEATRIZ GATTI BEATRIZ GATTI Esses bebês nunca mais veriam suas mães, mas a maioria deles também seria privada de uma vida inteira com suas famílias, irmãos, avós, tios e primos. Permanentemente separados. É essa a história da ESMA, um dos maiores e piores centros de detenção, tortura e extermínio registrados durante a ditadura militar argentina. Mas não o único. Também entre 1976 e 1983, espalhados por todo o país funcionaram outros 761 centros clandestinos dedicados à tortura e execução de militantes, estudantes, jornalistas, professores, religiosos e quaisquer outros enquadrados como “subversivos”. Equipes especializadas atuavam em locais nada preparados para operar uma parte importante do maquinário do regime: as maternidades clandestinas. Elas funcionavam em centros de detenção estratégicos para onde eram levadas cerca de 10% de todas as mulheres sequestradas, que estavam grávidas no momento da captura, de acordo com o relatório final da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep). Segundo depoimentos de alguns sobreviventes que testemunharam as condições da maternidade na ESMA, as gestantes recebiam melhor tratamento quando saíam da capucha – local em que os prisioneiros ficavam encapuzados, algemados pelas mãos e pés e isolados em cubículos – e eram enviadas ao setor das grávidas. “Estava grávida de oito meses. Primeiro eles me despiram completamente e checaram minha vagina, olharam meu ânus e começaram a me bater assim, nua como eu estava. Tentei proteger minha barriga o tempo todo e perdi a consciência.” Merita Susana Sequeira sobrevivente da ESMA “Eu, quando estava um dia na cela com os olhos vendados, de repente comecei a sentir meu filho se mover e, para mim, isso foi incrível. Era a vida no meio da morte. Era sentir que havia um lugar que eles não tinham conseguido alcançar.” Ana María Careaga sobrevivente da ESMA “No momento do parto, ela disse 'Não, não cortem o cordão, quero tê-lo comigo uns minutos a mais, senti-lo em cima de mim'. Sabia que iam separá-los e pelo menos ainda estava junto a seu corpo através do cordão umbilical e em cima de seu peito.” Sara Solarz sobrevivente da ESMA
- Buscarita | Mais
Sobre o site Buscarita é o produto final do trabalho de conclusão de curso de Beatriz Gatti de Castro pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), concluído em novembro de 2022 sob a orientação da prof.ª dr.ª Rosana de Lima Soares. O site utiliza informações de 13 entrevistas realizadas em agosto de 2022 em Buenos Aires, Argentina, além de material bibliográfico referente às Abuelas de Plaza de Mayo e ao Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), bem como informações do Museo Sitio de Memoria ESMA, do Parque de la Memoria, da Casa por la Identidad e do Archivo das Abuelas. A lista de livros, filmes e documentos consultados durante a produção do projeto pode ser acessada na aba Sobre o tema . Sobre a autora Beatriz Gatti é jornalista formada pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Trabalhou na produção do podcast Politiquês - Uma crise chamada Brasil, do Nexo Jornal, e como estagiária de redação na editoria Ponto Futuro, do mesmo veículo. Antes, passou pela equipe de comunicação digital da Fundação Osesp e pelas redações das revistas Galileu e Casa e Jardim. Na ECA-USP, foi presidente da Jornalismo Júnior, empresa júnior da universidade, em 2018. Entrou em contato com o tema do BNDG em abril de 2021, quando descobriu a solução científica que as Abuelas de Plaza de Mayo haviam criado para encontrar os netos desaparecidos durante a ditadura militar argentina. A partir de então, resolveu aprofundar-se no tema e transformá-lo em objeto de seu projeto de conclusão de curso. Quem é Buscarita? Saiba mais sobre a mulher que inspirou o nome do site. Como ajudar as Abuelas de Plaza de Mayo Clique aqui . Fique à vontade para me contatar pelo e-mail beatrizgatti.c@gmail.com ou para compartilhar quaisquer comentários comigo através do campo abaixo . Envie um comentário para mim Nome E-mail Mensagem Enviar Obrigada pela mensagem. Obrigada pelo acesso!
- Buscarita | As 'apropriações'
As 'apropriações' O que fizeram com os filhos dos desaparecidos? É sua primeira vez aqui. Por isso, tudo é novo: os cheiros, os sons, as luzes. Em poucos segundos, saiu de seu maior conforto para experimentar todos os sentidos possíveis. Sem caminho de volta, veio ao mundo. E agora? Apropriação como parte do plano Os bebês nascidos em cativeiro durante a ditadura militar na Argentina (1976-1983) foram privados de sua liberdade desde o parto. Foram retirados dos braços das mães, às quais se dizia que logo seriam devolvidos a elas ou levados aos cuidados de suas famílias. Isso aconteceu raras vezes. “A norma era outra. Após parirem sob condições subumanas, as mães eram transferidas [para a execução] e as crianças eram apropriadas ou inseridas em um circuito, que costumo denominar jurídico-burocrático, composto por creches, tribunais e equipes particulares de adoção”, diz Carla Villalta, coordenadora da equipe de Antropologia Política e Jurídica da Universidade de Buenos Aires (UBA). O que significa ser apropriado? Apropiación é um termo em espanhol cunhado pela equipe de advogados das Abuelas de Plaza de Mayo para definir o processo de roubo de filhos de desaparecidos que foram retirados de suas famílias e entregues a outras pessoas. Neste site, os neologismos em português “apropriação”, “apropriado” e “apropriar” referem-se aos conceitos de apropiación , apropiado e apropiar . Conceitualmente, a apropriação restringe-se ao período histórico da ditadura na Argentina, ou seja, entre 1976 e 1983. “Basicamente está ligada à ideia de perpetuar o desaparecimento dos pais, limpar todos os rastros, substituir a identidade e apagar a origem”, explica a pesquisadora da UBA. Nos centros clandestinos, mantinha-se propositalmente as gestações como parte do Processo de Reorganização Nacional, pelo qual os militares pretendiam exterminar os subversivos. Segundo o discurso que dominava entre as forças armadas, uma educação correta poderia impedir que os filhos dos desaparecidos também propagassem a subversão. Seria como cortar o mal pela raiz poupando a vida das crianças, embora muitas delas tenham sido assassinadas em ataques militares junto a seus pais. Além de roubar os nascidos em cativeiro, as apropriações incluíam como alvo as crianças pequenas que ficaram sozinhas após a execução dos pais ou até as que também foram levadas aos centros de detenção. “Os apropriadores na Argentina pegavam os filhos de quem eles mesmos haviam assassinado, com a ideia de oferecer uma criação que os convertesse em ‘argentinos de fato e de direitos’”, afirma Armando Kletnicki, psicanalista e chefe de trabalho da Cátedra de Psicologia, Ética e Direitos Humanos da UBA. CHRIS DEVERS/FLICKR Infância sob amarras Acomodo-me em uma poltrona e procuro por Claudia. Ela está no balcão do café já buscando seu pedido e, em poucos minutos, me vê e vem a meu encontro. Ela carrega uma bandeja com um pedaço de bolo e um suco de laranja, além da sutil gentileza de trazer consigo dois copos. Me oferece o suco, eu agradeço, mas digo que não quero. Estou um pouco nervosa, porque ela é a primeira apropriada com quem eu falo. E é um tema delicado. Sugiro que comecemos e ajusto a câmera no tripé e o microfone em cima da mesa. Claudia para de comer o bolo e junta suas mãos sobre os joelhos. Ajeita a postura, e também parece um pouco apreensiva, mas mais pela presença da câmera do que pela minha. Peço a ela que se apresente e faço as primeiras perguntas. Estamos nos conhecendo ali, aos poucos, apesar de estarmos falando muito mais dela do que de mim. E eu já conheço boa parte de sua história. Mas agora é diferente; é Claudia quem me conta as coisas que viveu. É ela quem conta que foi apropriada por um tenente-coronel e sua esposa quando tinha oito meses de idade, em novembro de 1978, embora não se lembre. Viveu toda sua infância sob os cuidados de um membro da inteligência do Exército e durante a ditadura que havia sequestrado e desaparecido com seus pais, Pepe e Gertrudis. É Claudia quem conta que, aos oito meses, foi levada ao centro clandestino Olimpo, a oeste da cidade de Buenos Aires, onde um médico cardiologista falsificou sua certidão de nascimento e, junto a um policial, a entregou a seus apropriadores. Quando pergunto sobre sua criação, ela a caracteriza como ‘estranha’. O tenente-coronel e sua esposa criaram Claudia como filha única em um domo de superproteção – e mentiras. Balançando a cabeça como quem lamenta uma lembrança, ela conta que ouvia em casa que os militares travavam uma guerra contra os subversivos, que queriam impor o comunismo na Argentina. O discurso do militar a quem ela chamava de pai era de que eles haviam salvado o país e agora os subversivos e as “loucas da Praça de Maio” tentavam se vingar. Sempre com uma expressão tranquila – e uma voz que às vezes se eleva somente para se sobrepor aos barulhos do café em que estamos –, Claudia fala sobre seus medos de criança. Perder sua suposta família e acabar sozinha, já que seus apropriadores tinham em torno de 50 anos quando a levaram consigo ainda bebê. Para ela, o que sustentou sua apropriação por tanto tempo – e certamente continua a manter tantas outras por aí – foi a criação de um vínculo de dependência emocional quase inabalável junto aos apropriadores: o medo de perdê-los, decepcioná-los e deixá-los. E, por mais que eu já tivesse lido sobre isso, ouvir diretamente de quem viveu esse fardo na pele é sentir mais de perto os danos que o plano sistemático de apropriação causou em uma geração de argentinos. Eu tinha cinco meses quando uma operação realizada na casa em que vivíamos matou minha mãe e uma família com duas crianças de três e cinco anos. Minha mãe havia me posto em um armário no quarto e foi isso que me protegeu um pouco dos gases e me salvou das balas. Depois de quatro meses no hospital com custódia policial, o juiz de menores, que sabia de tudo desde o início, me entrega a uma família que ele conhecia. Durante todo esse tempo nada foi feito para buscar minha família biológica. Manuel Gonçalves Granada Neto de número 57 restituído pelas Abuelas de Plaza de Mayo A adoção fraudulenta usada como método Não só médicos e militares participaram da execução do plano de roubo de meninos e meninas na Argentina. O processo teve o consentimento de juízes e escrivães de cartórios civis que davam prosseguimento a processos ilegais de adoção, falsificavam registros de nascimento ou simplesmente faziam vista grossa à inconsistência de dados e documentos. Ou seja, em muitos casos era possível suspeitar da origem daquela criança em processo de adoção, mas havia conivência jurídica com o plano dos militares. Segundo as Abuelas de Plaza de Mayo, que receberam cerca de 500 denúncias de casos de apropriação, houve quatro formas de roubo. Muitas crianças foram apropriadas pelos envolvidos ou responsáveis pelo desaparecimento ou morte dos próprios pais ou por cúmplices que atuaram no plano de apropriação. Pessoas que conheciam a origem da criança, mesmo sem estar envolvidas na execução prática dos crimes, também registraram meninas e meninos como filhos próprios a partir da falsificação de nomes e datas de nascimento. E existiram ainda muitos casos de adoção, nos quais nem sempre foi possível confirmar o quanto os pais adotivos sabiam ou tinham condições de suspeitar da origem das crianças. Há os casos de adoções de boa fé, em que a família não escondeu o que sabia dos filhos adotivos e colaborou com as investigações das Abuelas, que procuravam pelos seus netos. Mas mesmo assim o processo é considerado fraudulento; afinal, ninguém encaminhou aquelas crianças para adoção. Elas foram forçadas a enfrentar uma condição que não as contemplava. A grande diferença é que essas crianças foram restituídas às suas verdadeiras identidades tão logo se soube quem eram, como é o caso de Tatiana e Laura Sfiligoy , as primeiras netas restituídas pelas Abuelas de Plaza de Mayo. Abuelas de Plaza de Mayo e alguns dos netos já recuperados reunidos na sede da associação, incluindo Laura (à esq. do centro da foto, em frente à mesa) e Tatiana Sfiligoy (atrás da menina de branco, na lateral da mesa) ARCHIVO ABUELAS Mecanismos de defesa Para a psicanalista María Elena Domínguez, que atua no Centro de Atenção Psicológica pelo Direito à Identidade, a apropriação está relacionada a forçar papéis e funções parentais que não existem. “O que o apropriador tenta é criar um laço em que considera a criança um objeto, um objeto de seu discurso”, diz ela, que também participa da Cátedra de Psicologia, Ética e Direitos Humanos da UBA. Os efeitos de uma infância apropriada variam de caso a caso. Um deles pode ser a dificuldade de verbalizar e expressar sensações e angústias de um momento traumático. Uma criança pequena que presenciou a execução ou sequestro dos pais e não domina a comunicação verbal vai registrar aquele episódio de alguma forma. “Considerando que as memórias se constroem a partir de uma lógica entre pensamentos e palavras, algo que aconteceu muito precocemente na vida de quem ainda não domina a linguagem fica como uma marca, mas como se fosse uma marca direta no corpo mesmo”, explica o chefe da Cátedra, Armando Kletnicki. Para lidar com episódios traumáticos, dois mecanismos de defesa muito comuns observados na psicologia são o esquecimento e a negação. Domínguez cita o caso de Paula Eva Logares, que foi a primeira neta recuperada com a ajuda da ciência. Os apropriadores da criança a registraram como filha própria e recém-nascida, embora ela já tivesse quase dois anos de idade. “Para viver com os apropriadores, essa menina teve que esquecer aqueles 23 meses vividos até ali. Então, há algo nesse esquecimento que vai contra a imposição de uma outra realidade”, afirma a psicanalista. Já a negação pode aparecer de maneira sintomática no futuro, apesar de também ser um método de se proteger diante de traumas. Se um adolescente ou jovem criado e formado por um grupo familiar começa a ser confrontado por provas irrefutáveis de que aquela não é sua família biológica e, pior ainda, que aqueles que o criaram fizeram parte do grupo de repressores que podem ser os assassinos de seus pais biológicos, a primeira opção não é aceitar essas informações. “Se eu tenho duas representações que colidem, eu preciso negar uma para sobreviver. Então, rejeito o que está sendo dito”, afirma Kletnicki. O tempo não se devolve Até que se descubra a verdade a respeito da própria origem, o crime sobre os apropriados continua sendo cometido. A cada dia que se escolhe continuar mentindo para uma criança sobre sua história, os efeitos de uma infância apropriada se expandem, afirmam os psicólogos. “Eles escolheram sustentar isso durante 21 anos da minha vida, dizendo que me amavam, mas, na verdade, protegendo a si mesmos de uma decisão que haviam tomado conscientemente aos 50 anos de idade”. Essa é Claudia Victoria Poblete Hlaczik, neta de número 64 restituída pelas Abuelas de Plaza de Mayo. Além dela, as Abuelas contam até agora 131 casos resolvidos. Isto é, 132 histórias de gestações e crianças que haviam sido escondidas da sociedade e das famílias dos desaparecidos e foram descobertas e encontradas. Restituir é devolver algo ao lugar de onde se tirou e reparar os danos que isso pode ter causado, define Armando Kletnicki. Se alguém rouba um carro e bate com ele, por exemplo, a restituição seria devolver o carro após feitos os consertos de uma batida. Mas como isso seria feito com uma pessoa que teve mais do que bens materiais roubados, teve sua própria história de vida apropriada? “Com as pessoas, não há maneira de voltar atrás como se fossem um objeto que você deixa em um mecânico, arrumam e te devolvem”, diz o psicólogo. “O tempo não se devolve, nem os processos que o tempo formou. Não é possível haver crescido com determinadas experiências e apagar isso e começar de novo do lugar onde deveria ter estado.” Neste site, os termos em português “restituição”, “restituído” e “restituir” referem-se ao conceito de restituición de identidad usado pelas Abuelas de Plaza de Mayo. O psicanalista também se questiona sobre o número de netos ainda não encontrados, que são cerca de 370. O que isso pode dizer em relação às apropriações? Que elas tiveram êxito? Como se em alguns casos, mesmo que sob um contexto de mentiras, crianças tenham sido capazes de se construir como sujeito, e hoje pessoas adultas tenham convicção de que não querem explorar seu passado. Ou seria justamente ao contrário? Como se os adultos de hoje não tenham conseguido se desenvolver suficientemente para chegar a perguntar-se quem são. “Isso seria fruto de uma lógica de criação que os condenou a ser objetos do outro. Mas não temos essa resposta”, afirma Kletnicki. Paula Eva Logares junto à sua avó Elsa Pavón ABUELAS DE PLAZA DE MAYO/Fotografías de años en lucha
- Buscarita | Quem é Buscarita
A mulher por trás do nome do site A chilena Buscarita Imperi Roa vive na Argentina há 50 anos. Mudou-se para o país vizinho para viver junto ao filho Pepe, que havia ido para lá em 1971 com o objetivo de fazer um tratamento ortopédico. Durante a adolescência, Pepe sofreu um acidente que o fez perder as duas pernas. Ao chegar no hospital para ver o filho, a primeira coisa que Buscarita ouviu foi: “Mãe, não fique triste nem chore. Eu vou ser a primeira pessoa a correr com pernas ortopédicas”. E lá foi ele, aos 16 anos, em busca do feito na Argentina. Em 28 de novembro de 1978, durante a ditadura militar, Pepe e sua companheira Trudy foram sequestrados em Buenos Aires. A neta de Buscarita, que tinha apenas oito meses, foi junto dos pais até um campo de detenção. Lá, permaneceu por três dias até que um militar a levasse para casa para registrá-la como filha própria. E assim Claudia Poblete Hlaczik foi criada. Na época, Buscarita trabalhava como supervisora da limpeza em um prédio do governo que ficava muito próximo à Praça de Maio, no centro de Buenos Aires. Sem respostas sobre o paradeiro do filho, nora e neta nas muitas delegacias pelas quais passou, Buscarita resolveu um dia se aproximar daquelas mulheres que caminhavam ao redor da praça e, a partir daí, se uniu à luta das Madres e Abuelas de Plaza de Mayo. Buscarita seguiu em sua busca incessante por anos até que Claudia fosse encontrada e identificada como filha de José Poblete Roa (o Pepe) e Gertrudis Hlaczik (a Trudy), em fevereiro de 2000. A reaproximação entre avó e neta foi lenta, mas a Abuela respeitou o tempo da jovem que havia passado mais de duas décadas acreditando que sua identidade era outra. Um dia, ambas conversavam sentadas e Claudia se levantou, pegou na mão de Buscarita e a fez levantar para que dessem o primeiro abraço. E a neta disse: “Obrigada, vó, por ter me buscado e me dado a chance de conhecer minha verdadeira identidade”. Luta, família e trabalho Ao longo dos anos em que buscava por Pepe, Trudy e Claudia, a Abuela chilena tinha que conciliar o trabalho com os cuidados dos outros filhos e da casa, que era muito distante do centro de Buenos Aires. “Para as Abuelas mais pobres era muito mais difícil, porque tínhamos que levantar às 5 da manhã, pegar um trem, vir trabalhar, escapar do trabalho, fazer a ronda da praça e voltar”, conta Buscarita. Depois, ela chegava tarde em casa e deixava prontas as refeições para os filhos comerem no dia seguinte. Da busca coletiva feita pelas Abuelas, Buscarita ganhou muitas companheiras para a vida. “Tínhamos reunião toda semana, depois começamos a tomar um cafezinho, um chá, a rir, a chorar, todas juntas. E assim fomos virando amigas, amigas, amigas”, diz ela. Mesmo depois de encontrar Claudia, Buscarita não deixou de buscar os outros netos apropriados. “Não importava que não fôssemos a avó, encontrar um neto era como reencontrar o nosso. Era uma festa, o recebíamos com todo o amor do mundo”, conta. Hoje em dia, ela é a única avó que continua indo quase todos os dias à casa das Abuelas, em Buenos Aires. A presidenta Estela de Carlotto segue trabalhando de sua casa, em La Plata. Respectivamente de Córdoba e Mar del Plata, Sonia Torres e Ledda Barrero são as outras avós que completam o quarteto que permanece em atividade. Ambas ainda não encontraram os netos ou netas que devem ter nascido durante o cativeiro de suas filhas, mas seguem firmes na luta. Uma vida de buscas Os pais de Buscarita lhe deram um nome que foi premonitório em relação à sua vida. Uma década antes de localizar Claudia, a chilena teve outro reencontro potente. Mas nesse caso era ela quem estava sendo buscada. Um dia, uma colega de escola de Fernando, um de seus filhos, ouviu em uma rádio do Chile que dois irmãos procuravam por uma mulher chamada Buscarita e disse a ele que devia ser sua mãe. Ele respondeu que não podia ser, porque sua mãe não tinha irmãos. A colega, convicta de que não devia haver muitas pessoas chamadas Buscarita pelo mundo, insistiu na informação e convenceu Fernando a entrar em contato com a rádio. Sim, era ela. Aos 50 anos, Buscarita descobriu ter dois irmãos e, enfim, os conheceu. Eles foram separados após a morte dos pais de Buscarita em um acidente de carro. Ela tinha três anos e foi viver com sua avó paterna, enquanto seus irmãos mais velhos – que eram filhos da mãe de Buscarita, mas de outro pai – passaram a morar com a família paterna. A rádio passou o telefone do tio de Fernando, que ligou para ele e ouviu, do outro lado, alguém dizer aos gritos: “Encontrei minha irmãzinha, encontrei minha irmãzinha!”. PAULA SANSONE E VALERIA DRANOVSKY/ANCCOM-UBA Buscarita Roa junto à neta e à bisneta, Claudia Poblete e Guadalupe Álvarez Como é ter um nome que tem tudo a ver com as buscas? Buscarita Roa Sim! Todos me dizem o mesmo. Acontece algo muito estranho comigo, porque Buscarita… o ‘bus’ vem de ‘buscar’. Meus irmãos me buscaram, eu busquei meu filho e minha neta. Então, bem, meu nome faz todo sentido. Buscarita, muito obrigada! Buscarita Roa Não, por favor, obrigada a você pelo que está fazendo. Meu encontro com Buscarita: ternura de avó Demoro para encontrar o número certo, mas não o suficiente para me atrasar. Quando me localizo, toco a campainha e entro. Não à toa chamam a sede da associação de casa das Abuelas. A sensação de casa vem tanto da madeira que resistiu com o passar dos anos quanto da presença calorosa das muitas pessoas que entram e saem pela porta. É terça-feira, dia da reunião semanal do comitê diretor, então aproveito para ficar atenta à chegada dos netos com os quais ainda não consegui marcar entrevistas. Ouço parte da conversa de telefone entre a pessoa que me recebeu e o que deve ser a Buscarita do outro lado da linha. Sou informada de que ela acabou de entrar no táxi, mas que não deve demorar muito pois mora perto dali. Sim, vou conversar com uma Abuela de Plaza de Mayo e não me aguento de animação por dentro, mas tento não deixar transparecer. Quando ela chega, já estou com a câmera posicionada depois de mexer um pouco nas poltronas da sala para ajustar o enquadramento. Depois de me cumprimentar, ela se senta em outra poltrona, então pergunto se ela se incomoda em mudar para a outra, no canto da sala. Ela aceita com simpatia e começamos a entrevista. Fico preocupada em tomar muito de seu tempo e cansá-la (como fiz com o Victor após quase três horas de entrevistas que tiveram de ser divididas entre dois dias). Mas a cada resposta que ela conclui, solta um sorriso que indica estar tudo bem. Depois da última pergunta, agradeço pela entrevista e me levanto para cumprimentá-la com as mãos, o que logo se torna um abraço afetuoso. Com uma ternura bem típica de avós. Saímos da sala, e eu já estou tomada por uma sensação de que meu trabalho está dando certo. Na verdade, ali, depois daquela entrevista, a sensação é de que já deu certo. A conversa de 30 minutos com Buscarita me serve de combustível para seguir firme o ritmo de apuração nos quatro dias que me restam em Buenos Aires. Dos quatro netos com quem combinei de falar, só consegui encontrar-me com uma – que é justamente Claudia, a neta de Buscarita. Mas aproveito a visita à casa das Abuelas para esperar a chegada dos outros membros do comitê diretor que vêm para a reunião. Ainda é cedo, porém; a reunião só começa em duas horas. Espero em uma cadeira ao lado da porta e me atento à dinâmica daquele lugar. A campainha toca, alguém atende e abre a porta de fora e, depois de alguns segundos, também a de dentro. As pessoas que já estão na casa se dividem entre as várias salas e corredores que existem nela, mas ressurgem na sala principal toda vez que alguém chega. Quem entra é recebido com sorrisos e abraços, como se fosse sempre aniversário de alguém. Eles parecem felizes por estarem ali. Em uma dessas vezes, Buscarita reaparece e me vê novamente. Demonstra surpresa por eu ainda estar ali e preocupação por ser hora do almoço e eu ainda não ter comido. Vem até mim, toca no meu ombro e me oferece uma bolacha, um chazinho ou um mate. Sinto como se eu estivesse com a minha avó. Paro para pensar como é possível que aquela senhora, que tem uma faixa de cabelos brancos e um lenço colorido enrolado no pescoço, nunca tenha perdido a ternura apesar das dificuldades da vida, da perda do filho para a ditadura e da apropriação da neta. E lembro-me do que ela disse que a motiva a seguir trabalhando nas Abuelas: o amor. O amor aos filhos, o amor aos netos e o amor à vida, “porque enquanto se estiver vivo, é possível seguir fazendo coisas”.
- Buscarita | Como ajudar
Como ajudar Se você tem motivos para suspeitar que possa ser um dos netos buscados pelas Abuelas, basta entrar em contato com elas através do site abuelas.org.ar ou enviar um e-mail para abuelas@abuelas.org.ar . Se você conhece alguém que possa ter nascido na Argentina e tenha dúvidas sobre sua identidade, o endereço denuncias@abuelas.org.ar está disponível para receber mais informações. O formulário abaixo serve também como ponte de contato até as Abuelas. Sinta-se à vontade para compartilhar quaisquer informações, inclusive de forma anônima. Se você não duvida da própria identidade nem conhece alguém que possa ser um dos netos das Abuelas, mas tem interesse em ajudá-las, você pode contribuir divulgando sua luta e ampliando o alcance das buscas. Confira mais informações sobre o trabalho delas no site institucional e nas redes sociais, principalmente o Instagram , onde as novas campanhas são amplamente difundidas. Seu nome Seu e-mail Mensagem Enviar Obrigada pela mensagem. Não é fácil que te digam que você não é filha ou filho de fulano. Mas não há nada melhor do que a verdade. Nós trabalhamos pela verdade e pela justiça. Por isso, a todas as pessoas que têm dúvidas sobre sua identidade: venham às Abuelas, conversem conosco; nós temos equipes especializadas de cientistas, psicólogos e advogados, ou seja, todos capacitados para que as pessoas com dúvidas possam se encontrar. Buscarita Roa , Abuela de Plaza de Mayo
- Buscarita | Sobre o tema
Sobre o tema Livros, filmes e documentos para se aprofundar La historia de Abuelas Abuelas de Plaza de Mayo El padre en la apropiación de niños María Elena Domínguez Argentina 1985 (2022) Santiago Mitre 500 - Os Bebês Roubados pela Ditadura Argentina (2013) Alexandre Valenti Las Abuelas y la genética Abuelas de Plaza de Mayo Las viejas Madres de Plaza de Mayo Línea Fundadora A História Oficial (1985) Luis Puenzo 99,9% - La ciencia de las Abuelas (2012) Canal Encuentro Ciencia x la identidad Banco Nacional de Dados Genéticos La Convención sobre los Derechos del Niño en la Argentina Carla Villalta e Soledad Gesteira O Dia em que Eu Não Nasci (2011) Florian Cossen Pañuelos para la Historia (2015) Alejandro Haddad e Nicolás Valentini La biografía de Estela de Carlotto Javier Folco No nos han vencido Luis Zarranz La Casa de los Conejos (2021) Valeria Selinger Secreto a Voces (2018) Misael Bustos Confira a lista de referências utilizadas no projeto
- Política de Privacidade | Moray Dive School
Política de Privacidade Uma política de privacidade é uma declaração que comunica algumas ou todas as formas como um site coleta, usa, divulga e administra os dados de seus visitantes e clientes. Ela cumpre a exigência legal de proteção à privacidade do visitante ou cliente. Cada país tem suas próprias leis, com requisitos que variam segundo a jurisdição em relação ao uso de políticas de privacidade. Certifique-se de cumprir a legislação relevante para suas atividades e localização. Em geral, o que é preciso abordar na Política de Privacidade? Que tipo de informações são coletadas? Como as informações são coletadas? Por que você coleta as informações pessoais? Como você armazena, usa, compartilha e divulga informações pessoais de quem visita o seu site? Como (e se) você comunica isso aos visitantes do seu site? O seu serviço segmenta e coleta informações de menores de idade? Atualizações da Política de Privacidade Informações de contato Confira este artigo de suporte para receber mais informações sobre como criar uma Política de Privacidade. As explicações e informações fornecidas aqui são apenas exemplos gerais. Não confie neste artigo como orientação jurídica ou como recomendações sobre o que você realmente deve fazer. Recomendamos que você busque orientação jurídica se precisar de ajuda para entender e criar sua política de privacidade.
- Buscarita | Buscas das Abuelas de Plaza de Mayo
Buscar até o último As detetives Depois das infrutuosas visitas a delegacias, quartéis, hospitais e igrejas, tanto as Madres quanto as Abuelas começaram a buscar seus filhos e netos por outros meios. Muitas recorriam a conhecidos que tinham contato com alguém que poderia ajudá-las fornecendo informações ou até intermediando encontros com autoridades. Mas elas não podiam contar com a boa vontade daqueles que governavam o país naquele momento. Então, deram início a suas próprias investigações. As Abuelas incorporaram um verdadeiro papel de detetives. Além de interrogar vizinhos e potenciais testemunhas dos sequestros de seus filhos e netos, iam a escolas no horário de saída e se escondiam atrás de árvores ou carros enquanto procuravam por alguma criança que se parecesse com algum dos netos. “Outras avós fingiam ser vendedoras de produtos infantis. Tocavam a campainha e diziam: ‘Há um bebê nesta casa? Porque isso se usa assim…’. Dessa forma conseguiam dados e, em alguns casos, chegavam a ver a criança”, conta Nélida Navajas, avó que foi durante muitos anos secretária da instituição, no livro “La Historia de Abuelas”. “Estela [de Carlotto] propôs que formássemos equipes, e nós concordamos. Entrei em investigação. Deram-me uma câmera fotográfica e eu saía em meu Fiatzinho [Fiat 600]. No lugar indicado, levantava o capô do automóvel, como se tivesse algum defeito, e tirava fotos das crianças. Também conversava com as professoras e com as diretoras. Algumas me recebiam bem, outras, não. Às vezes me punham para fora da escola ou me perguntavam o que eu fazia com o carro em frente à porta, e eu lhes dizia que estava esperando minha neta.” Elena Opezzo ao livro “La Historia de Abuelas” CREATIVE COMMONS As primeiras denúncias de possíveis casos de apropriação vieram em papeizinhos que eram entregues a elas nas rondas da Praça de Maio. Um endereço e a informação de que um casal havia aparecido de repente com um bebê eram suficientes para que lá fossem as Abuelas tentar descobrir mais alguma coisa. Elas foram formando dossiês de investigação com relatos de testemunhas, depoimentos de familiares, denúncias, fotos e todo tipo de documento que pudesse ajudar na busca. Esses arquivos eram compartilhados com autoridades e personagens públicos com o intuito de ampliar cada vez mais o alcance sobre o que estava acontecendo na Argentina. As primeiras restituições A localização das irmãs Tatiana Ruarte Britos e Laura Malena Jotar Britos, em março de 1980, trouxe o fôlego de que as Abuelas precisavam. Depois de uma denúncia, as Abuelas foram até o juizado de menores onde corria um processo de adoção para as duas meninas, de seis e três anos, respectivamente. Sob a guarda do casal Sfiligoy, as crianças foram reconhecidas por suas avós e, posteriormente, Tatiana também as reconheceu – três anos depois do sequestro que as separou da mãe. Os pais adotivos nunca negaram que Tatiana e Laura (ou Mara, como havia sido nomeada por eles) conhecessem sua história, e as crianças mantiveram seus vínculos biológicos. “A princípio, queria que Tati viesse morar comigo. Mas entendemos que Inés e Carlos haviam formado uma família e elas estavam bem”, contou certa vez a avó paterna de Tatiana, Amalia Pérez, que era sempre recebida de braços abertos na casa dos Sfiligoy. Casos como o de Tatiana e Laura, porém, foram raros. Tatiana Ruarte Britos Sfiligoy e Laura Malena Jotar Britos Sfiligoy, restituídas em março de 1980 ARCHIVO ABUELAS O mundo precisa saber Ainda em meio ao regime, as Abuelas tentavam disseminar sua luta com a ajuda de exilados e figuras de projeção internacional. Um dos nomes que abriu muitas portas foi Adolfo Pérez Esquivel. O pacifista e ativista de direitos humanos ganhou o Nobel da Paz em 1980 e recebeu uma missão especial para a viagem em que receberia o prêmio: “Chicha Mariani [uma das fundadoras das Abuelas] me disse: ‘Olha, tenho que falar com você. Se você vai se encontrar com o Papa, com o João Paulo II, você pode levar os relatórios sobre as crianças’. Eu disse a ela: ‘Bem, então me prepare’”, escreveu o professor no livro “La Convención sobre los Derechos del Niño en la Argentina”. O slogan “Aparición con vida”, adotado pelas Madres de Plaza de Mayo em dezembro de 1980, que definia a exigência feita pelas mães dos desaparecidos, foi incorporado também pelas Abuelas e outros organismos defensores de direitos humanos. O caso das crianças apropriadas chamou a atenção inclusive da Comissão de Direitos Humanos da ONU. Concomitantemente às buscas, que nunca cessaram, as avós procuraram apoio na comunidade científica internacional para pedir por uma solução genética que as ajudasse. A saída foi adaptar a tecnologia dos testes de paternidade para criar o chamado índice de abuelidad , por meio do qual passaria a ser possível confirmar parentesco entre crianças e outros familiares além dos pais – incluindo pessoas de diferentes gerações, como os avós. A partir dali, era uma questão de tempo, pressão social e vontade política até que a revolução científica incentivada pelas Abuelas saísse do papel. Após o fim da ditadura, em 1983, todos os ingredientes estavam postos para a criação do Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), que aconteceu menos de quatro anos depois, em 1987. Dos 500 netos apropriados que calculam as Abuelas, 13 2 casos já foram resolvidos – e a grande maioria a partir das técnicas do Banco. Depois de criado, o órgão passou a receber amostras de sangue dos familiares que procuravam por algum dos filhos dos desaparecidos e até de pessoas que ninguém buscava, mas depois se descobriram netas das Abuelas . BEATRIZ GATTI 'Aparición con vida' foi um dos slogans defendidos pelas Madres e Abuelas de Plaza de Mayo no fim de 1980 Buscar e ser buscado Gerar a dúvida. Essa foi a estratégia que as Abuelas adotaram já nos primeiros anos do BNDG e mantêm até hoje. Havia uma mudança de direção importante no processo de buscas: as crianças apropriadas estavam crescendo e virando adolescentes ou até adultos. Embora as investigações nunca tenham parado, o papel de detetive já não fazia mais sentido e era hora de pensar em maneiras que incentivassem os supostos netos a refletir sobre sua identidade e a buscar sua verdadeira origem. Você sabe quem você é? BEATRIZ GATTI
- Buscarita | Como fazer a análise genética
Como fazer o teste Antes de chegar ao banco O resultado de um teste genético feito no Banco Nacional de Dados Genéticos é a última etapa de um minucioso processo de investigação sobre as origens de uma identidade. O BNDG só avalia amostras de sangue quando a análise de documentos, informações e depoimentos não permite excluir a possibilidade de que determinada pessoa seja filha ou filho de desaparecidos. Ou seja, não se sai fazendo análises de todos que suspeitam de sua identidade: elas são como a instância final para confirmar ou refutar a hipótese de que alguém seja neta ou neto das Abuelas de Plaza de Mayo. O primeiro passo é dar início à investigação. Ao longo dos anos, as Abuelas receberam muitas denúncias anônimas ou nominais em relação a possíveis casos de apropriação. Durante ou logo após a ditadura, não eram raras os telefonemas de vizinhos ou amigos que suspeitavam de um casal que havia aparecido, do dia para a noite, com um bebê em casa. Com as campanhas de conscientização das Abuelas, várias denúncias passaram a chegar também muitos anos depois do fim da ditadura a partir de quem resolveu contar o que sabia ou se lembrou de alguma informação que poderia ter a ver com casos de apropriação. Busca ativa pela própria identidade No final dos anos 1990, quando as Abuelas se deram conta de que os netos também poderiam estar em busca delas, a instituição criou a área de apresentação espontânea para receber pessoas com dúvidas sobre sua identidade. No segundo andar do prédio que abriga a sede das Abuelas, no bairro portenho de Montserrat, quatro pessoas se dividem para atender e fazer entrevistas com todos que chegam com suspeitas relacionadas à sua origem. os vínculos biológicos. “A ideia é gerar um espaço tranquilo, de muita conversa, que dura entre 45 minutos e 1 hora e meia”, conta Rodríguez, que trabalha na área há 17 anos. Como muitos documentos foram falsificados durante a ditadura, às vezes é difícil confirmar a data de nascimento. Mas há alguns caminhos que descartam a possibilidade de que alguém seja um possível neto das Abuelas. “Se a pessoa foi registrada antes de 1975, por exemplo, ela não é filha de desaparecidos”, afirma Rodríguez. “A certidão diz quando a pessoa foi registrada, que é diferente da data de nascimento. A data de registro é a que temos como verdadeira, porque ninguém vai registrar um bebê que ainda não tem”, acrescenta ela. Como a ditadura começou em 1976, não teria como alguém registrado em 1974 ter sido vítima de apropriação. A situação é diferente em casos de registro posterior a 1976. Paula Eva Logares, por exemplo, foi sequestrada junto à mãe em 1978 e registrada por militares como recém-nascida naquele ano. Só que ela já tinha quase dois anos. A investigação e análise desses documentos cabe à Comissão Nacional pelo Direito à Identidade (CoNaDI). Papel do Estado nas buscas Diferentemente do Banco Nacional de Dados Genéticos, a CoNaDI está aberta ao público para receber pessoas com dúvidas e ajudá-las na busca. Todas as pessoas que passam pela área de apresentação espontânea das Abuelas, inclusive, são encaminhadas à comissão, que é responsável por abrir investigações e dar prosseguimento (ou não) ao pedido de análise genética no BNDG. Para chegar ao Banco, portanto, todos os casos passam pela CoNaDI – exceto os que são investigados diretamente pela justiça, que também pode ordenar a realização de testes genéticos. "As Abuelas, como ONG, atendem a pessoa e a encaminham para a CoNaDI, que é o Estado. Então, pegamos essa informação, abrimos um arquivo e começamos a trabalhar no caso. Se a documentação não der respostas quanto à origem biológica da pessoa, ordenamos ao BNDG que colha uma amostra, realize a análise e nos informe o resultado." Manuel Gonçalves Granada secretário-executivo da CoNaDI e neto restituído pelas Abuelas de Plaza de Mayo em 1997 Uma delas é María Laura Rodríguez. Segundo ela, cerca de 500 pessoas entram em contato com as Abuelas anualmente para apresentar suas dúvidas. Esse número sofreu variações ao longo do tempo: começou com 50 pessoas nos primeiros anos, chegou a 800 após um programa de televisão abordar o tema da restituição e oscilou conforme restituições impactantes aconteceram, como a de Ignacio Montoya Carlotto, neto da presidenta Estela de Carlotto, em 2014. Nas entrevistas, que são confidenciais, o objetivo é identificar as pessoas que nasceram entre 1975 e 1980, anos considerados chaves para casos de apropriação, e entender o que motiva as dúvidas das pessoas. Há quem chegue já com a informação de que não é filho biológico de quem o criou – os que sabem que são adotados – e há quem suspeite sobre O músico Ignacio Montoya Carlotto, neto da presidenta das Abuelas, Estela de Carlotto, recuperou sua identidade em 2014 ARCHIVO ABUELAS As análises genéticas Cada amostra de DNA que entra no Banco tem seu perfil genético completo extraído – e uma parte é guardada como ‘reserva’ para análises posteriores. Com o perfil genético processado, um computador faz a comparação entre o material do suposto neto e o de cerca de 300 grupos familiares armazenados no Banco. “Em um caso de combinação, a primeira coisa a ser feita é repetir toda a análise a partir das amostras de reserva”, explica Florencia Gagliardi, chefe da área de DNA mitocondrial do Banco. A conclusão da análise é encaminhada à CoNaDI, que dá a notícia aos envolvidos de maneira sigilosa. Em caso de compatibilidade, o grupo familiar correspondente também é avisado. “Mas o resultado só é feito público se é da vontade da pessoa. As Abuelas informam [à sociedade] que encontraram um novo neto ou neta, que é filho de tal pessoa, e nada mais. Não revelam como a pessoa se chama atualmente, nem onde vive”, diz Manuel Gonçalves. “Isso é feito para que a pessoa possa ter o tempo de seu processo de restituição respeitado”, acrescenta o representante da CoNaDI. De acordo com Gagliardi, são realizadas entre 1 mil e 1,2 mil análises genéticas anualmente, e o tempo médio até que saiam os resultados é de cerca de três meses. Com a ajuda do BNDG, Carina Rosavik e Carolina Sangiorgi descobriram, após 40 anos, serem irmãs. O resultado foi descoberto em setembro de 2022 Outros casos (e causas) do Banco Criados para procurar exclusivamente os filhos de desaparecidos, a CoNaDI e o BNDG hoje também ajudam a resolver casos de tráfico de bebês que não tenham a ver diretamente com a ditadura. “A questão aqui é tratar de resolver a origem biológica das pessoas, não importa o período, quem esteve envolvido nisso ou a relação com a ditadura”, afirma Gonçalves. Há alguns anos, o Banco tem trabalhado em situações que não necessariamente são exclusivas ao terrorismo de Estado, o que já resultou em 19 reencontros entre mães e filhos que foram vítimas de tráfico de bebês. As análises também ajudaram a revelar casos de irmandade, como o de Carina Rosavik e de Carolina Sangiorgi , que se descobriram 100% filhas do mesmo pai e da mesma mãe após mais de 40 anos separadas. MAURO V. RIZZI/LA NACIÓN Netos que ninguém busca São 300 os grupos familiares que seguem à espera de um resultado positivo. “É um número dinâmico”, comenta Florencia Gagliardi. “Talvez algum grupo familiar tenha tido o caso resolvido e outros tenham sido incorporados.” A geneticista refere-se tanto à possibilidade de novas denúncias surgirem quanto às situações em que uma família descobre que a filha ou companheira do filho deu à luz enquanto estava presa em um dos centros de detenção. Foi o que aconteceu com Guillermo Amarilla Molfino. Em 2007, ele procurou as Abuelas para apresentar suas dúvidas e contar sua história, que o encaixava muito bem à possibilidade de ser um neto apropriado. Em sua certidão de nascimento, constava que ele havia nascido no Campo de Mayo, em Buenos Aires. Não estava escrito ‘Hospital Militar de Campo de Mayo’, mas apenas ‘Campo de Mayo’, que é uma base militar onde funcionaram um centro de detenção e uma maternidade clandestina. Guillermo deixou sua amostra no BNDG e posteriormente recebeu a notícia de que seu DNA não havia demonstrado compatibilidade suficiente com nenhum dos perfis do Banco. “Quando veio o resultado negativo, fechei as portas e disse ‘bem, essa questão acaba aqui’. O que eu queria era fazer uma pergunta, não importava se a resposta fosse sim ou não, qualquer opção era possível. A resposta foi não; então, aceitei, arrumei minha mochila e segui meu caminho”, conta ele. Dois anos depois, o depoimento de uma sobrevivente do Campo de Mayo alteraria a trajetória de Guillermo. Silvia Tolchinsky relatou em 2009 que Marcela Molfino estava grávida no ano de 1980, enquanto esteve detida no Campo de Mayo. Nem a sua própria família sabia, pois quando Marcela foi sequestrada, em 1979, a gestação estava ainda no primeiro mês. A partir do testemunho, as famílias de Marcela e seu companheiro foram ao BNDG deixar seu sangue – trinta anos depois dos desaparecimentos. “No caso em que integrantes são adicionados ao Banco e se monta um novo grupo familiar, todas as amostras de possíveis vítimas de apropriação que guardamos no Banco são comparadas a essa família”, explica Florencia Gagliardi. Portanto, cada nova inserção de grupos familiares à base de dados gera comparações com o material de todos os jovens que já haviam recebido um resultado negativo. Mesmo anos depois de ter fechado a porta para essa possibilidade, Guillermo descobriu ser filho de Marcela Molfino e Guillermo Amarilla, ambos desaparecidos desde o dia 17 de outubro de 1979. Ele não chegou a conhecer suas avós, que morreram na década de 1980 sem sequer saber da existência de um quarto neto além dos três filhos que o casal Molfino Amarilla já tinha. Aos 29 anos, Guillermo descobriu sua origem. Hoje, ele é membro do comitê diretor das Abuelas e trabalha para que o Museo Sitio de Memoria ESMA se torne patrimônio mundial da Unesco. CULTURA.GOB.AR Museo Sitio de Memoria ESMA, Buenos Aires Aqui funcionou um dos 762 centros de detenção e tortura utilizados pelos militares e espalhados pelo país durante a ditadura argentina ESMA/FLICKR
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