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As detetives
Depois das infrutuosas visitas a delegacias, quartéis, hospitais e igrejas, tanto as Madres quanto as Abuelas começaram a buscar seus filhos e netos por outros meios. Muitas recorriam a conhecidos que tinham contato com alguém que poderia ajudá-las fornecendo informações ou até intermediando encontros com autoridades. Mas elas não podiam contar com a boa vontade daqueles que governavam o país naquele momento. Então, deram início a suas próprias investigações.
As Abuelas incorporaram um verdadeiro papel de detetives. Além de interrogar vizinhos e potenciais testemunhas dos sequestros de seus filhos e netos, iam a escolas no horário de saída e se escondiam atrás de árvores ou carros enquanto procuravam por alguma criança que se parecesse com algum dos netos. “Outras avós fingiam ser vendedoras de produtos infantis. Tocavam a campainha e diziam: ‘Há um bebê nesta casa? Porque isso se usa assim…’. Dessa forma conseguiam dados e, em alguns casos, chegavam a ver a criança”, conta Nélida Navajas, avó que foi durante muitos anos secretária da instituição, no livro “La Historia de Abuelas”.
“Estela [de Carlotto] propôs que formássemos equipes, e nós concordamos. Entrei em investigação. Deram-me uma câmera fotográfica e eu saía em meu Fiatzinho [Fiat 600]. No lugar indicado, levantava o capô do automóvel, como se tivesse algum defeito, e tirava fotos das crianças. Também conversava com as professoras e com as diretoras. Algumas me recebiam bem, outras, não. Às vezes me punham para fora da escola ou me perguntavam o que eu fazia com o carro em frente à porta, e eu lhes dizia que estava esperando minha neta.”
Elena Opezzo ao livro “La Historia de Abuelas”
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As primeiras denúncias de possíveis casos de apropriação vieram em papeizinhos que eram entregues a elas nas rondas da Praça de Maio. Um endereço e a informação de que um casal havia aparecido de repente com um bebê eram suficientes para que lá fossem as Abuelas tentar descobrir mais alguma coisa.
Elas foram formando dossiês de investigação com relatos de testemunhas, depoimentos de familiares, denúncias, fotos e todo tipo de documento que pudesse ajudar na busca. Esses arquivos eram compartilhados com autoridades e personagens públicos com o intuito de ampliar cada vez mais o alcance sobre o que estava acontecendo na Argentina.
As primeiras restituições
A localização das irmãs Tatiana Ruarte Britos e Laura Malena Jotar Britos, em março de 1980, trouxe o fôlego de que as Abuelas precisavam. Depois de uma denúncia, as Abuelas foram até o juizado de menores onde corria um processo de adoção para as duas meninas, de seis e três anos, respectivamente. Sob a guarda do casal Sfiligoy, as crianças foram reconhecidas por suas avós e, posteriormente, Tatiana também as reconheceu – três anos depois do sequestro que as separou da mãe.
Os pais adotivos nunca negaram que Tatiana e Laura (ou Mara, como havia sido nomeada por eles) conhecessem sua história, e as crianças mantiveram seus vínculos biológicos. “A princípio, queria que Tati viesse morar comigo. Mas entendemos que Inés e Carlos haviam formado uma família e elas estavam bem”, contou certa vez a avó paterna de Tatiana, Amalia Pérez, que era sempre recebida de braços abertos na casa dos Sfiligoy. Casos como o de Tatiana e Laura, porém, foram raros.
Tatiana Ruarte Britos Sfiligoy e Laura Malena Jotar Britos Sfiligoy, restituídas em março de 1980
ARCHIVO ABUELAS
O mundo precisa saber
Ainda em meio ao regime, as Abuelas tentavam disseminar sua luta com a ajuda de exilados e figuras de projeção internacional. Um dos nomes que abriu muitas portas foi Adolfo Pérez Esquivel.
O pacifista e ativista de direitos humanos ganhou o Nobel da Paz em 1980 e recebeu uma missão especial para a viagem em que receberia o prêmio: “Chicha Mariani [uma das fundadoras das Abuelas] me disse: ‘Olha, tenho que falar com você. Se você vai se encontrar com o Papa, com o João Paulo II, você pode levar os relatórios sobre as crianças’. Eu disse a ela: ‘Bem, então me prepare’”, escreveu o professor no livro “La Convención sobre los Derechos del Niño en la Argentina”.
O slogan “Aparición con vida”, adotado pelas Madres de Plaza de Mayo em dezembro de 1980, que definia a exigência feita pelas mães dos desaparecidos, foi incorporado também pelas Abuelas e outros organismos defensores de direitos humanos. O caso das crianças apropriadas chamou a atenção inclusive da Comissão de Direitos Humanos da ONU.
Concomitantemente às buscas, que nunca cessaram, as avós procuraram apoio na comunidade científica internacional para pedir por uma solução genética que as ajudasse. A saída foi adaptar a tecnologia dos testes de paternidade para criar o chamado índice de abuelidad, por meio do qual passaria a ser possível confirmar parentesco entre crianças e outros familiares além dos pais – incluindo pessoas de diferentes gerações, como os avós.
A partir dali, era uma questão de tempo, pressão social e vontade política até que a revolução científica incentivada pelas Abuelas saísse do papel. Após o fim da ditadura, em 1983, todos os ingredientes estavam postos para a criação do Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG), que aconteceu menos de quatro anos depois, em 1987.
Dos 500 netos apropriados que calculam as Abuelas, 132 casos já foram resolvidos – e a grande maioria a partir das técnicas do Banco. Depois de criado, o órgão passou a receber amostras de sangue dos familiares que procuravam por algum dos filhos dos desaparecidos e até de pessoas que ninguém buscava, mas depois se descobriram netas das Abuelas.
BEATRIZ GATTI
'Aparición con vida' foi um dos slogans defendidos pelas Madres e Abuelas de Plaza de Mayo no fim de 1980
Buscar e ser buscado
Gerar a dúvida. Essa foi a estratégia que as Abuelas adotaram já nos primeiros anos do BNDG e mantêm até hoje. Havia uma mudança de direção importante no processo de buscas: as crianças apropriadas estavam crescendo e virando adolescentes ou até adultos. Embora as investigações nunca tenham parado, o papel de detetive já não fazia mais sentido e era hora de pensar em maneiras que incentivassem os supostos netos a refletir sobre sua identidade e a buscar sua verdadeira origem.