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Maternidades clandestinas

Como foi possível
nascerem crianças nesse lugar?

Quem hoje passa pelo número 8151 da Avenida del Libertador, em Buenos Aires, sente que ali há algo a ser notado. Uma atmosfera escondida por trás de muitos prédios que atualmente abrigam organismos e instituições ligadas aos direitos humanos. Um clima carregado de memória, verdade e justiça para os que conhecem ao menos um pouco da história do lugar onde funcionou a antiga Escola de Mecânica da Armada (ESMA). 

 

Foi lá que, entre 1976 e 1983, militares mantiveram presos, torturaram e mataram cerca de 5 mil homens e mulheres. Onde planos de sequestro, extermínio e execução eram traçados e de onde saíam grande parte dos vuelos de la muerte – método de execução adotado pelo regime militar argentino que consistia em jogar, de um avião, homens e mulheres atados a pedras em direção ao mar. Onde bebês nascidos em cativeiro eram separados de suas mães logo após o parto, que encurtava a sobrevida das mulheres que eram parcialmente poupadas para darem à luz. 

Ana María Martí foi sequestrada em 18 de março de 1977 e passou quase dois anos presa na ESMA, onde esteve submetida a condições subumanas, torturas e trabalho forçado. Recuperou sua liberdade em 15 de dezembro de 1978 e foi uma das testemunhas de julgamentos de crimes cometidos durante a ditadura. Em 2011, durante uma audiência que julgava o Plano Sistemático de Apropriação de Menores, Martí relatou que as grávidas eram mantidas vivas até o momento do parto. “Dentro da área das grávidas começaram a tratá-las muito melhor do que quando estavam na capucha. Comiam melhor, estavam mais limpas, podiam tomar banho.”

 

De acordo com Maria Alicia Milia, que também esteve presa por quase dois anos na ESMA, na capucha, a principal diferença era que as gestantes não usavam capuzes, mas óculos que as permitiam ao menos respirar. Posteriormente receberam colchonetes e camas de metal, mas, assim como as outras detidas, comiam um sanduíche com mate pela manhã, no almoço e no jantar. 

 

Apesar dos relatos de melhores tratamentos na área das grávidas, não existia garantia alguma do bem-estar de qualquer um dos presos. Afinal, estavam privados de sua liberdade e sofriam diferentes tipos de violência – quando mantidos vivos. 

 

Seja nas maternidades ou não, as mulheres que carregavam seus filhos foram sistematicamente submetidas a abusos, inclusive durante e após os partos, quando seus bebês eram imediatamente retirados de seus cuidados.  

As maternidades compunham um plano audacioso: o roubo sistemático dos filhos de desaparecidos. 

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BEATRIZ GATTI

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BEATRIZ GATTI

Esses bebês nunca mais veriam suas mães, mas a maioria deles também seria privada de uma vida inteira com suas famílias, irmãos, avós, tios e primos. Permanentemente separados. 

 

É essa a história da ESMA, um dos maiores e piores centros de detenção, tortura e extermínio registrados durante a ditadura militar argentina. Mas não o único. Também entre 1976 e 1983, espalhados por todo o país funcionaram outros 761 centros clandestinos dedicados à tortura e execução de militantes, estudantes, jornalistas, professores, religiosos e quaisquer outros enquadrados como “subversivos”. 

 

Equipes especializadas atuavam em locais nada preparados para operar uma parte importante do maquinário do regime: as maternidades clandestinas. Elas funcionavam em centros de detenção estratégicos para onde eram levadas cerca de 10% de todas as mulheres sequestradas, que estavam grávidas no momento da captura, de acordo com o relatório final da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep). 

 

Segundo depoimentos de alguns sobreviventes que testemunharam as condições da maternidade na ESMA, as gestantes recebiam melhor tratamento quando saíam da capucha – local em que os prisioneiros ficavam encapuzados, algemados pelas mãos e pés e isolados em cubículos – e eram enviadas ao setor das grávidas. 

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“Estava grávida de oito meses. Primeiro eles me despiram completamente e checaram
minha vagina, olharam meu ânus
e começaram a me bater assim,
nua como eu estava. Tentei proteger minha barriga o tempo todo e
perdi a consciência.”

Merita Susana Sequeira

sobrevivente da ESMA

“Eu, quando estava um dia na cela com os olhos vendados, de repente comecei a sentir meu filho se mover e, para mim, isso foi incrível. Era a vida no meio da morte. Era sentir que havia um lugar que eles não tinham conseguido alcançar.”

Ana María Careaga

sobrevivente da ESMA

“No momento do parto, ela disse 'Não, não cortem o cordão, quero tê-lo comigo uns minutos a mais, senti-lo em cima de mim'. Sabia que iam separá-los e pelo menos ainda estava junto a seu corpo através do cordão umbilical e em cima de seu peito.”

Sara Solarz

sobrevivente da ESMA

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