Conhecer a verdade
Em determinado momento, eu disse ao juiz: “Posso me recusar a fazer o teste?”. Ele respondeu que eu poderia, mas disse que só assim seria possível confirmar se eu era a prova de um delito. E eu, como suspeitava da minha verdadeira origem, vi uma oportunidade de buscar respostas. Ter a determinação do juiz também me libertava um pouco da responsabilidade de decidir fazer aquele teste, que poderia acabar incriminando meus apropriadores. Tomar essa decisão sozinha tendo um forte vínculo com quem me criou teria sido muito difícil.
As restituições das crianças roubadas durante a ditadura foram muito importantes para provar que os centros de detenção clandestinos existiram, que de fato mulheres grávidas foram sequestradas pelos militares e tiveram seus bebês roubados e que parte do sistema judicial e alguns médicos atuaram como cúmplices, falsificando documentos. É um resultado que revela uma série de mentiras.
Mas eu já estive nessa posição e sei que a primeira reação é dizer não, é negar aquela ideia absurda de que você não é filha ou filho de quem te criou por toda a vida. É muito forte pensar que o seu corpo pode ser a prova de um crime, sentir-se mais como uma coisa do que como uma pessoa.
Os resultados que tivemos até agora, no entanto, têm mostrado que vale a pena, por mais difícil que pareça. O incômodo inicial da resposta positiva vai desaparecendo, porque, por mais que o resultado bagunce a sua vida, é uma bagunça baseada na verdade. Só assim é possível tomar decisões reais e suas. Eu estive 18 anos mantendo vínculos com meus apropriadores e ninguém me disse nada. Mas, sem saber a verdade, essa não era uma decisão minha, pois continuei por todo esse tempo no lugar em que me colocaram.
Eu não cheguei aos 40 anos de idade com incertezas, mas ainda hoje há pessoas já com seus 45 anos, vendo seus filhos crescerem e sem saber sua verdadeira origem. Eu entendo que é difícil e que o que há do outro lado é uma história triste, mas é a sua. A liberdade só vem quando você descobre a verdade, por mais dura que ela seja.
Nós temos o direito de saber quem somos, assim como os familiares dos desaparecidos têm o direito de saber o que aconteceu com seus filhos. E é dever do Estado investigar e resolver parte do dano causado por ele, porque muitas pessoas têm documentos públicos e oficiais com informações falsas. O que revitimiza apropriados não é o encontro com a verdade, mas a continuidade do processo violento em que ainda vivem cerca de 370 pessoas.
Texto baseado nos depoimentos dos netos restituídos
Claudia Poblete Hlaczik, Guillermo Amarilla Molfino, Manuel Gonçalves Granada e Tatiana Sfiligoy
Direito à intimidade
Tirar sangue para fazer análises genéticas traz uma discussão ética e legal que confronta dois direitos fundamentais: o direito à identidade e o direito à intimidade. “A justiça decidiu que o direito à resolução de um crime contra a humanidade é absoluto”, diz Florencia Gagliardi, cientista do Banco Nacional de Dados Genéticos (BNDG). Mas, sem desconsiderar o direito à intimidade, os juízes argentinos também garantem formas alternativas de extrair amostras de DNA para preservar a pessoa que é uma possível vítima de apropriação.
Gagliardi detalha que, nos casos em que alguém se nega a tirar sangue para os testes genéticos, há ainda a opção de raspagem bucal – que apresenta alto conteúdo de DNA, bem como as amostras hemáticas. Se mesmo assim a coleta for negada pela pessoa, a justiça pode autorizar uma equipe especializada para ir até a casa dela e solicitar objetos pessoais onde possa haver DNA, como uma escova de dentes ou uma lâmina de barbear. Essas amostras contêm menos material genético, mas todas têm o perfil genético completo processado nos laboratórios do BNDG.
Sem ter dimensão de como haviam sido os processos de apropriação na Argentina, Dolto comparou a situação com as crianças que perderam os pais durante a Segunda Guerra na França e foram acolhidas por outras famílias. “O raciocínio [de Dolto] foi que, se a apropriação era traumática por si só, porque incluía o violento processo de separar a criança da mãe, retirá-la da família apropriadora traria um segundo trauma”, explica Armando Kletnicki, psicanalista e chefe de trabalho da Cátedra de Psicologia, Ética e Direitos Humanos da Universidade de Buenos Aires (UBA).
Rapidamente após a publicação do conteúdo da reunião, especialistas argentinos reagiram. “As Abuelas e muitos organismos de direitos humanos responderam que era justamente o contrário. Restituir a verdade não era um segundo trauma, mas uma tentativa de resolver o primeiro trauma, que é o da apropriação”, afirma Kletnicki.
Eles argumentaram também que se tratava de situações incomparáveis, pois, apesar de em ambas as situações as crianças terem sofrido grandes traumas, no caso argentino elas foram ilegalmente adotadas, inscritas como filhas próprias de outras pessoas e privadas de sua origem, enquanto no caso francês as crianças órfãs pelo nazismo nunca tiveram sua identidade negada.
Anos depois, Françoise Dolto reconheceu o equívoco e se retratou às presidentes das Abuelas, Estela de Carlotto e Chicha Mariani, em uma conversa. Mas não registrou as novas reflexões por escrito. “A ideia do segundo trauma ganhou muita relevância porque Dolto era uma psicanalista de renome, então foi escutada pelo mundo. Mas creio que a polêmica se sanou há muito tempo por ela própria, e não há base na psicologia para pensar que a restituição é algo traumático”, acrescenta o pesquisador da UBA. “A verdade é restauradora, não traumática.”
A farsa do segundo trauma
Em 1986, a renomada psicanalista francesa Françoise Dolto viajou a Buenos Aires para uma série de encontros. Em um deles, em que se reuniu com especialistas em adoções, exílios e desaparecimentos, Dolto dialogou com o escritor Marcelo Losada – que colaborava com as Abuelas de Plaza de Mayo – e defendeu que as crianças apropriadas permanecessem com as famílias que as haviam ‘adotado’. Dessa forma, segundo a psicanalista, evitaria-se um segundo trauma de separação.
A psicanalista francesa
Françoise Dolto