top of page
menino de costas observa horizonte do mar

As 'apropriações'

O que fizeram com os filhos dos desaparecidos?

É sua primeira vez aqui. Por isso, tudo é novo: os cheiros, os sons, as luzes. Em poucos segundos, saiu de seu maior conforto para experimentar todos os sentidos possíveis. Sem caminho de volta, veio ao mundo. E agora?

Apropriação como parte do plano

 

Os bebês nascidos em cativeiro durante a ditadura militar na Argentina (1976-1983) foram privados de sua liberdade desde o parto. Foram retirados dos braços das mães, às quais se dizia que logo seriam devolvidos a elas ou levados aos cuidados de suas famílias. Isso aconteceu raras vezes. “A norma era outra. Após parirem sob condições subumanas, as mães eram transferidas [para a execução] e as crianças eram apropriadas ou inseridas em um circuito, que costumo denominar jurídico-burocrático, composto por creches, tribunais e equipes particulares de adoção”, diz Carla Villalta, coordenadora da equipe de Antropologia Política e Jurídica da Universidade de Buenos Aires (UBA).

 

O que significa ser apropriado? Apropiación é um termo em espanhol cunhado pela equipe de advogados das Abuelas de Plaza de Mayo para definir o processo de roubo de filhos de desaparecidos que foram retirados de suas famílias e entregues a outras pessoas. Neste site, os neologismos em português “apropriação”, “apropriado” e “apropriar” referem-se aos conceitos de apropiación, apropiado e apropiar

 

Conceitualmente, a apropriação restringe-se ao período histórico da ditadura na Argentina, ou seja, entre 1976 e 1983. “Basicamente está ligada à ideia de perpetuar o desaparecimento dos pais, limpar todos os rastros, substituir a identidade e apagar a origem”, explica a pesquisadora da UBA.

 

Nos centros clandestinos, mantinha-se propositalmente as gestações como parte do Processo de Reorganização Nacional, pelo qual os militares pretendiam exterminar os subversivos. Segundo o discurso que dominava entre as forças armadas, uma educação correta poderia impedir que os filhos dos desaparecidos também propagassem a subversão. Seria como cortar o mal pela raiz poupando a vida das crianças, embora muitas delas tenham sido assassinadas em ataques militares junto a seus pais. 

 

Além de roubar os nascidos em cativeiro, as apropriações incluíam como alvo as crianças pequenas que ficaram sozinhas após a execução dos pais ou até as que também foram levadas aos centros de detenção. “Os apropriadores na Argentina pegavam os filhos de quem eles mesmos haviam assassinado, com a ideia de oferecer uma criação que os convertesse em ‘argentinos de fato e de direitos’”, afirma Armando Kletnicki, psicanalista e chefe de trabalho da Cátedra de Psicologia, Ética e Direitos Humanos da UBA.

CHRIS DEVERS/FLICKR

em um muro, desenho de um menino atrás de uma janela gradeada

Infância sob amarras

Acomodo-me em uma poltrona e procuro por Claudia. Ela está no balcão do café já buscando seu pedido e, em poucos minutos, me vê e vem a meu encontro. Ela carrega uma bandeja com um pedaço de bolo e um suco de laranja, além da sutil gentileza de trazer consigo dois copos. Me oferece o suco, eu agradeço, mas digo que não quero. Estou um pouco nervosa, porque ela é a primeira apropriada com quem eu falo. E é um tema delicado.

 

Sugiro que comecemos e ajusto a câmera no tripé e o microfone em cima da mesa. Claudia para de comer o bolo e junta suas mãos sobre os joelhos. Ajeita a postura, e também parece um pouco apreensiva, mas mais pela presença da câmera do que pela minha. 

 

Peço a ela que se apresente e faço as primeiras perguntas. Estamos nos conhecendo ali, aos poucos, apesar de estarmos falando muito mais dela do que de mim. E eu já conheço boa parte de sua história. Mas agora é diferente; é Claudia quem me conta as coisas que viveu. 

 

É ela quem conta que foi apropriada por um tenente-coronel e sua esposa quando tinha oito meses de idade, em novembro de 1978, embora não se lembre. Viveu toda sua infância sob os cuidados de um membro da inteligência do Exército e durante a ditadura que havia sequestrado e desaparecido com seus pais, Pepe e Gertrudis.

 

É Claudia quem conta que, aos oito meses, foi levada ao centro clandestino Olimpo, a oeste da cidade de Buenos Aires, onde um médico cardiologista falsificou sua certidão de nascimento e, junto a um policial, a entregou a seus apropriadores. Quando pergunto sobre sua criação, ela a caracteriza como ‘estranha’. 

 

O tenente-coronel e sua esposa criaram Claudia como filha única em um domo de superproteção – e mentiras. Balançando a cabeça como quem lamenta uma lembrança, ela conta que ouvia em casa que os militares travavam uma guerra contra os subversivos, que queriam impor o comunismo na Argentina. O discurso do militar a quem ela chamava de pai era de que eles haviam salvado o país e agora os subversivos e as “loucas da Praça de Maio” tentavam se vingar. 

 

Sempre com uma expressão tranquila – e uma voz que às vezes se eleva somente para se sobrepor aos barulhos do café em que estamos –, Claudia fala sobre seus medos de criança. Perder sua suposta família e acabar sozinha, já que seus apropriadores tinham em torno de 50 anos quando a levaram consigo ainda bebê. 

 

Para ela, o que sustentou sua apropriação por tanto tempo – e certamente continua a manter tantas outras por aí – foi a criação de um vínculo de dependência emocional quase inabalável junto aos apropriadores: o medo de perdê-los, decepcioná-los e deixá-los. E, por mais que eu já tivesse lido sobre isso, ouvir diretamente de quem viveu esse fardo na pele é sentir mais de perto os danos que o plano sistemático de apropriação causou em uma geração de argentinos. 

Eu tinha cinco meses quando uma operação realizada na casa em que vivíamos matou minha mãe e uma família com duas crianças de três e cinco anos. Minha mãe havia me posto em um armário no quarto e foi isso que me protegeu um pouco dos gases e me salvou das balas. Depois de quatro meses no hospital com custódia policial, o juiz de menores, que sabia de tudo desde o início, me entrega a uma família que ele conhecia. Durante todo esse tempo nada foi feito para buscar minha família biológica.

Manuel Gonçalves Granada

Neto de número 57 restituído pelas Abuelas de Plaza de Mayo

A adoção fraudulenta usada como método

 

Não só médicos e militares participaram da execução do plano de roubo de meninos e meninas na Argentina. O processo teve o consentimento de juízes e escrivães de cartórios civis que davam prosseguimento a processos ilegais de adoção, falsificavam registros de nascimento ou simplesmente faziam vista grossa à inconsistência de dados e documentos. Ou seja, em muitos casos era possível suspeitar da origem daquela criança em processo de adoção, mas havia conivência jurídica com o plano dos militares. 

 

Segundo as Abuelas de Plaza de Mayo, que receberam cerca de 500 denúncias de casos de apropriação, houve quatro formas de roubo. Muitas crianças foram apropriadas pelos envolvidos ou responsáveis pelo desaparecimento ou morte dos próprios pais ou por cúmplices que atuaram no plano de apropriação. Pessoas que conheciam a origem da criança, mesmo sem estar envolvidas na execução prática dos crimes, também registraram meninas e meninos como filhos próprios a partir da falsificação de nomes e datas de nascimento. E existiram ainda muitos casos de adoção, nos quais nem sempre foi possível confirmar o quanto os pais adotivos sabiam ou tinham condições de suspeitar da origem das crianças. 

 

Há os casos de adoções de boa fé, em que a família não escondeu o que sabia dos filhos adotivos e colaborou com as investigações das Abuelas, que procuravam pelos seus netos. Mas mesmo assim o processo é considerado fraudulento; afinal, ninguém encaminhou aquelas crianças para adoção. Elas foram forçadas a enfrentar uma condição que não as contemplava. A grande diferença é que essas crianças foram restituídas às suas verdadeiras identidades tão logo se soube quem eram, como é o caso de Tatiana e Laura Sfiligoy, as primeiras netas restituídas pelas Abuelas de Plaza de Mayo.

Abuelas de Plaza de Mayo e alguns dos netos já recuperados reunidos na sede da associação, incluindo Laura (à esq. do centro da foto, em frente à mesa) e Tatiana Sfiligoy (atrás da menina de branco, na lateral da mesa) 

Abuelas de Plaza de Mayo e alguns dos netos já recuperados reunidos na sede da associação

ARCHIVO ABUELAS

Mecanismos de defesa

Para a psicanalista María Elena Domínguez, que atua no Centro de Atenção Psicológica pelo Direito à Identidade, a apropriação está relacionada a forçar papéis e funções parentais que não existem. “O que o apropriador tenta é criar um laço em que considera a criança um objeto, um objeto de seu discurso”, diz ela, que também participa da Cátedra de Psicologia, Ética e Direitos Humanos da UBA.

 

Os efeitos de uma infância apropriada variam de caso a caso. Um deles pode ser a dificuldade de verbalizar e expressar sensações e angústias de um momento traumático. Uma criança pequena que presenciou a execução ou sequestro dos pais e não domina a comunicação verbal vai registrar aquele episódio de alguma forma. “Considerando que as memórias se constroem a partir de uma lógica entre pensamentos e palavras, algo que aconteceu muito precocemente na vida de quem ainda não domina a linguagem fica como uma marca, mas como se fosse uma marca direta no corpo mesmo”, explica o chefe da Cátedra, Armando Kletnicki. 

 

Para lidar com episódios traumáticos, dois mecanismos de defesa muito comuns observados na psicologia são o esquecimento e a negação. Domínguez cita o caso de Paula Eva Logares, que foi a primeira neta recuperada com a ajuda da ciência. Os apropriadores da criança a registraram como filha própria e recém-nascida, embora ela já tivesse quase dois anos de idade. “Para viver com os apropriadores, essa menina teve que esquecer aqueles 23 meses vividos até ali. Então, há algo nesse esquecimento que vai contra a imposição de uma outra realidade”, afirma a psicanalista. 

 

 

Já a negação pode aparecer de maneira sintomática no futuro, apesar de também ser um método de se proteger diante de traumas. Se um adolescente ou jovem criado e formado por um grupo familiar começa a ser confrontado por provas irrefutáveis de que aquela não é sua família biológica e, pior ainda, que aqueles que o criaram fizeram parte do grupo de repressores que podem ser os assassinos de seus pais biológicos, a primeira opção não é aceitar essas informações. “Se eu tenho duas representações que colidem, eu preciso negar uma para sobreviver. Então, rejeito o que está sendo dito”, afirma Kletnicki.

                                    O tempo não se devolve

                                       Até que se descubra a verdade a respeito da própria origem, o crime sobre os                                         apropriados continua sendo cometido. A cada dia que se escolhe continuar                                              mentindo para uma criança sobre sua história, os efeitos de uma infância                                             apropriada se expandem, afirmam os psicólogos. “Eles escolheram                                                        sustentar isso durante 21 anos da minha vida, dizendo que me amavam,                                              mas, na verdade, protegendo a si mesmos de uma decisão que haviam                                                tomado conscientemente aos 50 anos de idade”. Essa é Claudia Victoria Poblete                                Hlaczik, neta de número 64 restituída pelas Abuelas de Plaza de Mayo.

 

Além dela, as Abuelas contam até agora 131 casos resolvidos. Isto é, 132 histórias de gestações e crianças que haviam sido escondidas da sociedade e das famílias dos desaparecidos e foram descobertas e encontradas. 

 

Restituir é devolver algo ao lugar de onde se tirou e reparar os danos que isso pode ter causado, define Armando Kletnicki. Se alguém rouba um carro e bate com ele, por exemplo, a restituição seria devolver o carro após feitos os consertos de uma batida. Mas como isso seria feito com uma pessoa que teve mais do que bens materiais roubados, teve sua própria história de vida apropriada? 

 

“Com as pessoas, não há maneira de voltar atrás como se fossem um objeto que você deixa em um mecânico, arrumam e te devolvem”, diz o psicólogo. “O tempo não se devolve, nem os processos que o tempo formou. Não é possível haver crescido com determinadas experiências e apagar isso e começar de novo do lugar onde deveria ter estado.” Neste site, os termos em português “restituição”, “restituído” e “restituir” referem-se ao conceito de restituición de identidad usado pelas Abuelas de Plaza de Mayo.

 

O psicanalista também se questiona sobre o número de netos ainda não encontrados, que são cerca de 370. O que isso pode dizer em relação às apropriações? Que elas tiveram êxito? Como se em alguns casos, mesmo que sob um contexto de mentiras, crianças tenham sido capazes de se construir como sujeito, e hoje pessoas adultas tenham convicção de que não querem explorar seu passado. Ou seria justamente ao contrário? Como se os adultos de hoje não tenham conseguido se desenvolver suficientemente para chegar a perguntar-se quem são. “Isso seria fruto de uma lógica de criação que os condenou a ser objetos do outro. Mas não temos essa resposta”, afirma Kletnicki.

paula eva logares e elsa pavón

Paula Eva Logares

junto à sua avó Elsa Pavón

ABUELAS DE PLAZA DE MAYO/Fotografías de años en lucha

bottom of page